sábado, 30 de novembro de 2013

o inventor





a vida nos leva
como a aquela gente leva aquele menino e os cães...
o único domínio é o instante
não importam as horas nem os dias à frente ou que passaram
a incerteza é todo esse céu sobre eles

não é pouca a vida
e já é muito para os sentidos
o gosto bom ou até mesmo os sabores ruins

se o esquecem, o menino brinca com coisas
inventa estórias, até o chamarem de volta
tantas, para esse protagonista miserável
rico em travessias

noite tarde, seguem juntos
sua mãe,  que dá banho e comida
seu pai, que trabalha com seus braços fortes
estes braços que nunca o abraçaram

Já é muito o que vê pela estrada
e bem pouco o que se pode esperar desse menino
e de seus braços

era apenas mais um dia
e hoje, tantos sem essa urgência de vida
sem essa sua falta ...









domingo, 24 de novembro de 2013

Rabisco






nos cantos, nas penumbras
onde não visitam mais nossos olhares
habitam pequenas planuras
e um leve esquecimento de pouso de poeira
onde deslizamos com o dedo
algo sobre o pó de nossos pensamentos
traços cuidadosamente movidos
como se diz um segredo
traços que se desenham repensantes
incompletos como as confissões
que guardam as senhas de verdades
de mal traçados beijos
de momentos que aprisionamos
em garrafas de vinho, vazias
o enigma das flores entre as páginas dum livro
e que cuidamos para não saírem das páginas que as guardam
achatadas como a imperfeição dos desejos
entre mundos inesperados
como o pouco que se vive
do instante que nos vive
e que não é como o vidro, mas sim essa poeira
que nunca se mistura com o vidro, nem a pedra ou a madeira velha
enquanto nossas roupas espreitam
as pontas de nossos dedos sujos






segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Pouso





é certo aquele homem
longe das gentes e de seus gestos
escapa dos olhares, das roupas
e de hábitos irreversíveis
é certo

em sua terra e mais nada
em seu campo
com sua estação de pensamentos
e suas campinas

é certo aquele homem
aquela estrada
e seu caminho de vida
seu suor em sua testa
seu trabalho que se refaz
de tempos em tempos

é certa sua incerteza
seu sertão que resiste
seu olhar na serra
seu sangue e sua ode

é bom o gosto da comida
sua quietude atenta
a hora lenta e o breu no qual sucumbe
até a última língua de fogo

é certo aquele errante
e o seu nada



segunda-feira, 11 de novembro de 2013

incabível





tanta cor não cabe no olhar
seleto e confuso

o belo não nos cabe por inteiro
espaira como euforia
inúmeros sentidos
e nos dissolve...
como sal lançado ao rio

não nos cabe a amplidão
das pequeninas flores
que cabem em sua mão

parece não caber
o tanto que nos dá a vida
o clarão de um sorriso quieto
o bem querer contido

parece não caber essa cantiga
que dança dentro de nós
o gosto breve
o sabor de poucas palavras
a impermanência do dia
a urgência sincera que nos sabe









sábado, 2 de novembro de 2013

Tangedores





não soube contar as gotas da neblina da madrugada
que me acendiam pontos pequeninos, gélidos
como não sei contar a chuva de estrelas na noite
e a chuva dos dias

não se sabe o tempo que se evapora
esse cálculo impreciso
que mede os corpos quando se tocam
e se banham contentos
revelam e revoltam-se
rebuscam e escrevem um poema vivo
que vibra em suas mãos tangedouras
em suas veias em fuga do coração
na voz errante que soa lá fora
que nos leva...
busca-nos dum tempo que não vivemos
nos queima e lançam inúmeras centelhas no céu
enquanto os rebanhos caminham sob o luar
libertos de nossas moradas
e as guitarras cravam cristais de luz
nas estradas que nunca se findarão
nos campos que nos protegem
no silvo suave dos capins
que nos arrodeiam
incontáveis
e cúmplices
de nossas vidas cintilantes



















sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Ainda


Quando pede um café
Quando pede a conta
Quando reza o dia
Sei que sabe, mas não diz

Segundo quadrimestre
Primeiro andar
Segue na avenida, na esquina, na passarela
No item quarto, na página dezessete
Não diz também

Tanto é preciso
O peso da carne e das batatas
O kilo dessa procura
Pensa nos pratos do vendedor

O olhar do dono
O lucro e o alívio
As bocas e os risos
Não dizem esse silêncio insaciável

Mas apesar de tudo ainda canta
No samba de mesa
Nas águas que fluem
Na ventania
No gosto da pinga
Do vinho e da canção

O silêncio naufraga nesse mar morto
Nesse sal intenso, transpira
Nesse olhar de dentro
Ainda...