quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

monólogo






estava escrito
e vi desmanchar parte a parte
numa ventania de vapores
de tintas sedentas na areia

o outono desfez a carne
oca a armadura da inconformidade
ainda de pé ecoando uma paisagem exaurida
que renasceu envelhecida

as sementes já não incandescem o mundo
pois se romperam no deserto
nem há mais cavalos de puro sangue
voadores velozes nessas dunas

os vinhos ficaram claros
com o sangue azul
as taças ficaram rasas
emborcadas nesse mundo avesso
e nem produzem mais o som
com o roçar dos dedos em seu lábio molhado

e essas tonturas sem torpor
não entendem nem são companheiras
nem consolam os bebedores
acostumados a afugentar a mente
e a sorrir na tragédia dos rostos
justificando razões insensatas

o mundo embriagou-se de vez de um estranho senso
se inundou de um plasma insípido no céu da boca
entalou-se com suas torres
perdeu o coração do tempo
entrou casa adentro

pior companhia não há
para esse monólogo do desejo







segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

entreposto





diz o meu contrário
e estranho qualquer forma de entender

por fora é só um quarto e coisas
por dentro é só uma vida

nesse entreposto pareço estar à beira
já fora de lugar
evitando saber o que transpôs primeiro
e o que ainda é o outro lado

os sentidos tentam violar o rosto
livro fechado lapidando sombras
que parece estar inteiro
mas que conhece o delírio de portas abertas
palavras sujas
e as línguas de fogo

a melhor forma de se voltar é ir embora
ter os princípios sem fins
saber o gosto invertido
rasgar os escritos para permanecer os verbos
desdobrar as certezas e ver o que sobra

mergulho breve
enquanto as roupas secam
sente a lama da pura inconsistência
e as marcas de um corpo vadio

por dentro tantas estantes ainda vazias
por fora um pequeno abrigo







terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Andar






de súbito, andar...
a rua é um convite sem motivos
andar talvez seja a única razão
de andar por andar
sem caminho seguro

a vida não acalma na noite
nem o sono nos ensina a acordar
por isso é preciso às vezes
fazer o que fomos feitos para fazer
com os olhos, com os ouvidos
com as pernas
mesmo que o pensamento insista
em se manifestar
para que isso seja uma condição
de estar vivo

educa este desesperado pensamento
com passos bem tranquilos
e faça o coração bater sem caminho traçado

deixe lá os sentimentos densos
vá com os mais leves
ou então os leve todos
pra passear
pra tomar sol e ficarem mais bonitos

andar generosamente
com tudo o que está escondido
dar pernas ao que está preso
pra sair do lugar onde está cravado
ponha-os para correr um pouco
e brincar de pega-pega

anda assim
com janelas e portas abertas
deixe sair e entrar

andar assim
sem ter que andar assim