sábado, 20 de abril de 2024


Calmaria




ali, o mar...
era tudo.
não cabia nem pensar

mar vem
mar ia
mar que cambaleia

mar vivo, velho e novo

tecidos de água
dançando ventos marinhos
urdimentos suaves trançados na areia

e como um sentimento
d'um horizonte que suspende o peito
verga a água nua e solta
tomba e suspira no seu leito

mar e nada
mar e sempre...

permita-me um silêncio
pulsar, pulsar, pulsar...


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Veteranos



passamos por muitas coisas
por assombros anunciados
como uma população em travessia
numa trincheira de miseráveis 
cruzando pelo meio de uma guerra

foi banalizado o pavor
normalizada a estupidez
tornamo-nos vulneráveis de vez

era insegura a rua
e temerário dizer o que se pensava
mesmo numa mesa de bar

fomos sufocados pelos odores de pensamentos podres
ameaçados por abutres famintos que espreitavam nossa alma
esparramados na capoeira como cangaceiros em fuga
apagado o lampião na noite sem lua

sim
subtraídos dos ares 
daqueles que nos inspiravam
como se quase não tivesse jeito
nem mesmo as manhãs nos renovavam
nem as madrugadas nos serenavam

e hoje, depois da guerra vencida
depois da poeira assentada
vejo meus amigos como veteranos
rotos, combalidos
talvez ressignificando os passos, de muleta

na cisma sobre essa vitória
com a suspeita de vulnerabilidade de uma fantasia
tão longe, cada um, dos seus
com tantas cicatrizes nuas

vejo-os, estranhos, mudados, acovardados
com os sonhos pisoteados
nessa aurora do lixo virtual

meus amigos...

e tudo que precisamos, talvez
é de um simples e desorganizado sarau







domingo, 22 de janeiro de 2023

Assim são as coisas





esperei
mais do que precisava
além da fronteira do engano
sem ter para onde ir

tudo mudando
e eu com esse sonho guardado, não sei mais onde
com o vinho derramado,
sem mais a urgência do encontro

a vida sela caminhos novos
inesperados e sem nos pedir
assim, tudo acontece
assim que tudo tece
as coisas são assim

e como é estranho conviver sem despedir
ou reviver um movimento inacabado
fingir que hoje é um passado
ainda incompleto
ainda um afeto

mas esperei tanto
ainda mais além do que deveria
porque queria

e fui desesperado
suavemente iludido
pelo tempo
pelo que foi imaginado

as coisas apenas são assim
estão de qualquer jeito
e não são apenas coisas
é algo muito além desta palavra

muito além desta palavra
e muito aquém do que senti...







A corda




o caminho do homem
"é uma corda estendida sobre um abismo"
e os dois lados do abismo
quer seja o bem, quer seja o mal
ambos são queda, lado a lado
ambos ávidos por um corpo
pela gravidade e aceleração

caminho de malabarista
além dos passos, neste caminho bamboleante
faz malabares com as mãos
lança objetos
lança idéias
articula posições

faz rodopios com a cabeça
faz malabares na mesa de jantar,
na cama de dormir,
no altar, no púlpito,
com a língua de cobra,
com as garras de dragão

mas como se perder d'um caminho-corda,
como escolher num caminho-corda, se todos caem?

o homem está caminho reto
no varal de casa para a rua
e para toda queda lhe espera uma rede
colhendo os peixes famintos
que alimentarão os super-homens da terra

"perigosa travessia"
inevitável tremer e cair
neste mar-mundo
na queda , o sonho moribundo









sexta-feira, 9 de abril de 2021

Pernoite




um amigo me lembrou
na hora certa
de forma mais desmontada
assim como o inesperado
rompendo a ordem, a normalidade

no meio da queda
ao segura-lo, eis que me puxou para o real
sem sobrepor com nada que parecesse com o normal
rompendo a casca, com um desejo sofrido
como se tivesse uma jaula no peito

se o corpo é livre e a alma, uma represa
faz passar fome em um banquete
é o medo de viver e seus grilhões de plumas
a pena riscando nos tribunais da consciência
e a conveniente espera dos chacais

e tudo isso não passa de uma página perdida
como uma história ruim que parece ser mais longa
regida pela gramática dos cortes
a navalha da língua dividindo os sabores dos versos
a rima presa no mote das cancelas

dura travessia que perdura
cavalo, sentimento e cia
a batalha, arreios e armadura
montaria, página virada
estrada,
estrada...










segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Lua




Tão bela a lua lá no alto
pedindo calma ao mundo
tão serena e lenta
reluzindo sobre as águas 
um caminho para o céu
até o horizonte mar

Não pode o homem
com essa sede 
ir incendiando tudo
antes fosse brilho
como na face das águas
no escuro breu dessa baía

aquele pequeno barco
com uma luz pequenina
vai como um pequeno cometa
cortando a imensidão do mar
buscando o farol da lua

mas agora ela se escondendo
enquanto eu gravito pensamentos
como se fosse possível guardar 
aquela imagem
aqueles movimentos

antes de ir completamente
me deixou no tempo seu 
no seu movimento
me deixou mais próximo dela
como se não importasse mais as questões
da ciência ou da crença

a lua se escondeu enfim, do mundo
mas me deixou o tempo
de imaginá-la nele, lenta
imagem nua

terça-feira, 28 de maio de 2019

fantasia





estamos sempre em algum lugar...
assim, não há por quê ser mais
qualquer distância
qualquer que seja o fim
que te separa tanto

se de dia somos atores
na noite somos o eu
pois a noite nos cobra os sonhos
procura sentido
mas alivia docilmente
com a carícia de um sono estrelado

depois desperta
cercados dum mesmo cenário 
que nos põe no mesmo roteiro de ontem
na mesma semana passada
nos trilhos que cortam os campos
os mundos de cada um

volta teu sonho
sonhar é um verbo futuro do presente
sonhar é semente
aurora depois do crepúsculo

sorria para tudo que ainda não foi
gesta no corpo 
cuida que as vezes dói

e cante
pois tristeza quer alegria
torna a solidão em fantasia
e tenha sempre perto 
uma boa lembrança
o que é bom recordar

invente a sua frente
encontre essa saída
aonde estiver
algum dia
em qualquer lugar