domingo, 20 de abril de 2025

Cacarecos


Não sei se por cansaço, não sei, dos redemoinhos, talvez, que não nos permite pensar
quando nada consola ou abre o dia, nessa pausa breve que muda o sentido é um momento das pequenas coisas. Coisas pequenas, sempre em volta, mínimas, as que têm apenas uma história própria.
Pequenos quebra-cabeças, miniaturas de todos os tipos, dadas por alguém. alguém conhecido, que se viveu por anos, ou apenas conheceu em um dia. Um amigo, um amor, um estranho...

Pedacinhos de papel, que se guarda por algum rabisco, como se fosse importante guardar.
Para guardar ridiculamente um momento.
cadernos de música com muitos escritos que não notas musicais, desenhos, versos...
Tantos papeis, pedrinhas, conchas pequenas, uma infinidade
Memória em pedaços que segredam seus valores, sem o valor aparente.
Coisas sem lugar, fora de lugar

Sei que tudo isso que não tem lugar cabe em mim e se uma delas sumisse, sentiria falta
e perceberia o lugar dela.
Só existem em nós. Nem é guardar coisas. O sentimento é que faz isso.

Nem sabia por que guardava com tanto cuidado, mas agora vejo mais claramente e terei cuidado se eu vir algo pequeno por aí. Pois pode ser de alguém.

E não.
isso não é um poema...




Dois Tons



Tem uma moça que é leve feito uma pluma
Mas não tem pena de quem a vê
Castiga sem dó aquele seu sorriso
Quieto querendo se esconder

Sei de  uma nuvem que é só dela
Como a vela dum barco no imenso mar
Que ora chove, ora parece pintura
Que esconde o sol e veste o luar

Ela some, ela vem à minha janela
Como flor abrindo seus botões
Breve ciranda faceira
Meninas dos olhos de dois tons

Se muda seu tempo, sai de baixo
Perigoso raio de olhar peregrino
Mas se se acalma, é doce e mansa fera
É sorte de quem se desespera
É norte e sul
Perdição e caminho
Paz e tormentos
Rosa dos ventos








sábado, 20 de abril de 2024


Calmaria




ali, o mar...
era tudo.
não cabia nem pensar

mar vem
mar ia
mar que cambaleia

mar vivo, velho e novo

tecidos de água
dançando ventos marinhos
urdimentos suaves trançados na areia

e como um sentimento
d'um horizonte que suspende o peito
verga a água nua e solta
tomba e suspira no seu leito

mar e nada
mar e sempre...

permita-me um silêncio
pulsar, pulsar, pulsar...


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Veteranos



passamos por muitas coisas
por assombros anunciados
como uma população em travessia
numa trincheira de miseráveis 
cruzando pelo meio de uma guerra

foi banalizado o pavor
normalizada a estupidez
tornamo-nos vulneráveis de vez

era insegura a rua
e temerário dizer o que se pensava
mesmo numa mesa de bar

fomos sufocados pelos odores de pensamentos podres
ameaçados por abutres famintos que espreitavam nossa alma
esparramados na capoeira como cangaceiros em fuga
apagado o lampião na noite sem lua

sim
subtraídos dos ares 
daqueles que nos inspiravam
como se quase não tivesse jeito
nem mesmo as manhãs nos renovavam
nem as madrugadas nos serenavam

e hoje, depois da guerra vencida
depois da poeira assentada
vejo meus amigos como veteranos
rotos, combalidos
talvez ressignificando os passos, de muleta

na cisma sobre essa vitória
com a suspeita de vulnerabilidade de uma fantasia
tão longe, cada um, dos seus
com tantas cicatrizes nuas

vejo-os, estranhos, mudados, acovardados
com os sonhos pisoteados
nessa aurora do lixo virtual

meus amigos...

e tudo que precisamos, talvez
é de um simples e desorganizado sarau







domingo, 22 de janeiro de 2023

Assim são as coisas





esperei
mais do que precisava
além da fronteira do engano
sem ter para onde ir

tudo mudando
e eu com esse sonho guardado, não sei mais onde
com o vinho derramado,
sem mais a urgência do encontro

a vida sela caminhos novos
inesperados e sem nos pedir
assim, tudo acontece
assim que tudo tece
as coisas são assim

e como é estranho conviver sem despedir
ou reviver um movimento inacabado
fingir que hoje é um passado
ainda incompleto
ainda um afeto

mas esperei tanto
ainda mais além do que deveria
porque queria

e fui desesperado
suavemente iludido
pelo tempo
pelo que foi imaginado

as coisas apenas são assim
estão de qualquer jeito
e não são apenas coisas
é algo muito além desta palavra

muito além desta palavra
e muito aquém do que senti...







A corda




o caminho do homem
"é uma corda estendida sobre um abismo"
e os dois lados do abismo
quer seja o bem, quer seja o mal
ambos são queda, lado a lado
ambos ávidos por um corpo
pela gravidade e aceleração

caminho de malabarista
além dos passos, neste caminho bamboleante
faz malabares com as mãos
lança objetos
lança idéias
articula posições

faz rodopios com a cabeça
faz malabares na mesa de jantar,
na cama de dormir,
no altar, no púlpito,
com a língua de cobra,
com as garras de dragão

mas como se perder d'um caminho-corda,
como escolher num caminho-corda, se todos caem?

o homem está caminho reto
no varal de casa para a rua
e para toda queda lhe espera uma rede
colhendo os peixes famintos
que alimentarão os super-homens da terra

"perigosa travessia"
inevitável tremer e cair
neste mar-mundo
na queda , o sonho moribundo









sexta-feira, 9 de abril de 2021

Pernoite




um amigo me lembrou
na hora certa
de forma mais desmontada
assim como o inesperado
rompendo a ordem, a normalidade

no meio da queda
ao segura-lo, eis que me puxou para o real
sem sobrepor com nada que parecesse com o normal
rompendo a casca, com um desejo sofrido
como se tivesse uma jaula no peito

se o corpo é livre e a alma, uma represa
faz passar fome em um banquete
é o medo de viver e seus grilhões de plumas
a pena riscando nos tribunais da consciência
e a conveniente espera dos chacais

e tudo isso não passa de uma página perdida
como uma história ruim que parece ser mais longa
regida pela gramática dos cortes
a navalha da língua dividindo os sabores dos versos
a rima presa no mote das cancelas

dura travessia que perdura
cavalo, sentimento e cia
a batalha, arreios e armadura
montaria, página virada
estrada,
estrada...