quinta-feira, 15 de junho de 2023

Veteranos



passamos por muitas coisas
por assombros anunciados
como uma população em travessia
numa trincheira de miseráveis 
cruzando pelo meio de uma guerra

foi banalizado o pavor
normalizada a estupidez
tornamo-nos vulneráveis de vez

era insegura a rua
e temerário dizer o que se pensava
mesmo numa mesa de bar

fomos sufocados pelos odores de pensamentos podres
ameaçados por abutres famintos que espreitavam nossa alma
esparramados na capoeira como cangaceiros em fuga
apagado o lampião na noite sem lua

sim
subtraídos dos ares 
daqueles que nos inspiram
como se quase não tivesse jeito
nem mesmo as manhãs nos renovavam
nem as madrugadas nos serenavam

e hoje, depois da guerra vencida
depois da poeira assentada
vejo meus amigos como veteranos
rotos, combalidos
talvez ressignificando os passos, de muleta

na cisma sobre essa vitória
com a suspeita de vulnerabilidade de uma fantasia
tão loge, cada um, dos seus
com tantas cicatrizes nuas

vejo-os, estranhos, mudados, acovardados
com os sonhos pisoteados
nessa aurora do lixo virtual

meus amigos...

e tudo que precisamos, talvez
é de um simples e desorganizado sarau







domingo, 22 de janeiro de 2023

Assim são as coisas





esperei
mais do que precisava
além da fronteira do engano
sem ter para onde ir

tudo mudando
e eu com esse sonho guardado, não sei mais onde
com o vinho derramado,
sem mais a urgência do encontro

a vida sela caminhos novos
inesperados e sem nos pedir
assim, tudo acontece
assim que tudo tece
as coisas são assim

e como é estranho conviver sem despedir
ou reviver um movimento inacabado
fingir que hoje é um passado
ainda incompleto
ainda um afeto

mas esperei tanto
ainda mais além do que deveria
porque queria

e fui desesperado
suavemente iludido
pelo tempo
pelo que foi imaginado

as coisas apenas são assim
estão de qualquer jeito
e não são apenas coisas
é algo muito além desta palavra

muito além desta palavra
e muito aquém do que senti...







A corda




o caminho do homem
"é uma corda estendida sobre um abismo"
e os dois lados do abismo
quer seja o bem, quer seja o mal
ambos são queda, lado a lado
ambos ávidos por um corpo
pela gravidade e aceleração

caminho de malabarista
além dos passos, neste caminho bamboleante
faz malabares com as mãos
lança objetos
lança idéias
articula posições

faz rodopios com a cabeça
faz malabares na mesa de jantar,
na cama de dormir,
no altar, no púlpito,
com a língua de cobra,
com as garras de dragão

mas como se perder d'um caminho-corda,
como escolher num caminho-corda, se todos caem?

o homem está caminho reto
no varal de casa para a rua
e para toda queda lhe espera uma rede
colhendo os peixes famintos
que alimentarão os super-homens da terra

"perigosa travessia"
inevitável tremer e cair
neste mar-mundo
na queda , o sonho moribundo